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Os textos de Nag-Hammadi
e outros similares, que circularam no início da era Cristã, foram
denunciados como hereges por cristãos ortodoxos em meados do século II.
Sabemos que muitos dos primeiros seguidores de Cristo
foram condenados por outros cristãos como hereges, porém quase tudo que
conhecíamos sobre eles provinha do que fora escrito por seus adversários
para atacá-los. O bispo Irineu, que dirigia a igreja em Lyon por volta do
ano 180, escreveu cinco volumes intitulados The
Destruction and Overthrow of
Falsely So-called Knowledge (A
Destruição e o Fim ao Falsamente Pretenso Conhecimento), que começam
com sua promessa de apresentar
os pontos de vista daqueles que estão ensinando heresias (...) mostrar quão
absurdas e inconsistentes são suas declarações em relação à verdade
(...) Faço isso para que (...) possam demandar a todos os seus conhecidos
que evitem tal abismo de loucura e blasfêmia contra Cristo. 15
Segundo um terceiro texto
valentiniano, a Interpretação d o
Conhecimento, o Salvador ensina: “Vosso Pai, que está no céu, é
um só.“ 12O próprio Irineu nos conta que o credo que
selecionava de modo
eficaz os marcionistasda igreja provava-se inútil contra os
valentinianos, que recitavam o credo ortodoxo junto com outros cristãos. No entanto,
Irineu explica que, embora
“confessassem verbalmente um Deus”, faziam isso com reservas, em suas
mentes, dizendo uma coisa e pensando
outra". 13 Enquanto os marcionistas blasfemavam, de forma clara,
contra o criador, os valentinianos, insiste, o faziam de modo velado:
Essas
pessoas são, na aparência, cordeiros, pois parecem ser como nós pelo
que dizem em público, ao repetirem nossas palavras [da confissão]; mas
no íntimo sãolobos. 14O que mais afligia Irineu era que a maioria dos cristãos não
considerava os seguidores de Valentino hereges. Grande parte não
saberia diferenciar o ensinamento valentiniano do ortodoxo; afinal, dizia,
a maioria das pessoas também não sabe distinguir entre pedaços de vidro
e esmeraldas! Contudo, declara, “embora sua linguagem seja semelhante à
nossa”,
os pontos de vista “não apenas são bastante diferentes,
como estão cheios de blasfêmias”. 15A
aparente semelhança com o ensinamento ortodoxo tornou essa heresia mais
perigosa como veneno disfarçado em leite. Então, escreveu os cinco
volumes de sua densa Refutation
and Overthrow
of
Falsely So-called Gnosis
(Refutação e Fim da Falsa Pretensa Gnose) para ensinar os incautos a
discernir entre a verdade, que salva os fiéis, e o_ensinamento_gnóstico, que os destrói em um “abismo de
loucura e blasfêmia”. 16
Enquanto os valentinianos confessavam, em público, sua fé em um Deus, 17 nas reuniões privadas insistiam em diferenciar a imagem popular de
Deus como mestre, rei, senhor, criador e juiz do que essa imagem
representava - Deus entendido como a derradeira origem de todos os seres. 18
Valentino denominava essa origem “a profundeza”; 19
seus seguidores a descreviam como o princípio fundamental invisível e
incompreensível. 20Grande parte dos cristãos, diziam
eles, confundia imagens de Deus apenas com a realidade. 21
Salientava que, algumas vezes, as escrituras descreviam Deus como simples
artesão, ou juiz vingador, ou rei que governava no céu, e até um mestre
ciumento. Essas imagens, porém, diziam, não podiam ser comparadas ao
ensinamento de Jesus
de que “ Deus é espírito” ou “Pai da verdade”. 22
O autor do Evangelho_de_Filipe, outro valentiniano, mostra que nomes podem
ser muito decepcionantes, pois desviam nossos pensamentos do correto para
o incorreto. Assim, aquele que ouve a palavra “Deus" não percebe o
correto, mas sim o incorreto. Desse modo“o Pai”, “o Filho, “o
Espírito_Santo”, e “vida”, “luz, “ressurreição,
“a Igreja" e todo o resto - as pessoas não percebem o que é
correto, mas percebem o incorreto... 23Paul Tillich, teólogo protestante, fez, há pouco, uma distinção
semelhante entre o Deus que imaginamos ao ouvir essa
palavra e o “Deus além de Deus”, ou seja, o “fundamento do ser”
que subjaz a todos os conceitos e imagens.
Ele admitiu que essa questão intrigava os próprios gnósticos: Perguntam, quando confessam as mesmas coisas e participam da mesma adoração (...) como nós, sem nenhuma razão, permanecemos longe deles; e como confessam as mesmas coisas e têm as mesmas doutrinas, são chamados de hereges! 24 Sugiro, mais uma vez, não ser possível responder de forma completa a essa questão se considerarmos esse debate, exclusivamente, em termos religiosos e filosóficos. Mas quando investigamos como a doutrina de Deus funciona de fato nos escritos_gnósticos e ortodoxos, podemos ver como essa polêmica religiosa também envolve questões políticas e sociais.
A mudança gnóstica do monoteísmo foi considerada e talvez pretendesse ser um ataque ao seu sistema. Quando os cristãos ortodoxos e os gnósticos discutiam a natureza de Deus, estavam ao mesmo tempo discutindo a questão da autoridade espiritual. Essa questão dominava um dos primeiros escritos da igreja em Roma uma carta atribuída a Clemente, chamado Bispo de Roma (ca. 90-100). Clemente, como porta-voz da igreja_romana, escreveu à comunidade Cristã em Corinto, em tempos de crise: certos líderes da igreja de Corinto haviam sido destituídos do poder. Clemente diz que “alguns indivíduos ousados e obstinados” os tiraram do ofício: “pessoas sem reputação [levantaram-se] contra outras com reputação, os tolos contra os sábios, os jovens contra os velhos.” 25 Usando linguagem política, chama isso “rebelião” 26e insiste em que os líderes depostos sejam reinvestidos de poder: adverte que devem ser temidos, respeitados e obedecidos. Com que fundamentos? Clemente argumenta que Deus, o Deus de Israel, governa sozinho todas as coisas: 27ele é o senhor e o mestre a que devemos obedecer; o único juiz que estabelece a lei, punindo os rebeldes e gratificando aqueles que obedecem à lei. Contudo, como são, de fato, administradas as normas de Deus? Neste ponto a teologia de Clemente torna-se prática: Deus, diz ele, delega sua “autoridade de reinar” aos “governantes e líderes na terra”. 28 Quem são os governantes indicados? Clemente responde que são os bispos, os padres e os diáconos. Quem se recusa a “curvar-se” 29 e a obedecer aos líderes da igreja é culpado de insubordinação contra o próprio mestre divino. Arrebatado por seu argumento, Clemente adverte que quem desobedece às autoridades divinas ordenadas “recebe a pena de morte!”. 30 Essa carta marca um momento dramático na história do cristianismo. Pela primeira vez, encontramos aqui um argumento para a divisão da comunidade Cristã entre “o clero” e o laicismo”. A igreja será organizada em termos de uma ordem estrita de superiores e subordinados. Mesmo fazendo parte do clero, Clemente insiste em hierarquizar cada membro, bispo, padre ou diácono, “em sua própria ordem”: 31 cada um deve observar “as regras e mandamentos” de sua posição o tempo todo.
Irineu (130 dC - 200 dC) Bispo de Lyon e Polemista Anti-Gnóstico A sua obra é composta de cinco volumes é são assim caracterizadas:
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