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Evelina despertou num quarto espaçoso, com duas janelas deixando ver o céu. Emergia de um sono profundo, pensou. Diligenciou recordar-se, assentando contas da própria situação. Como teria entrado na amnésia de que estava tornando agora à tona da consciência? Desemperrou a custo os mecanismos da memória e passou a lembrar-se, vagarosamente...
Algo como que se lhe desabotoara no cérebro e vira-se flutuar sobre o próprio corpo adormecido... Logo após, o sono invencível. De nada mais se apercebera.
Inspecionou o ambiente, concluindo que o pouso se lhe trocara. Inferiu das primeiras observações que, tombada em desmaio, fora reconduzida ao hospital e ocupava, agora, larga dependência, que o verde-claro tornava repousante. Em mesa próxima, viu rosas que lhe chamavam a atenção para o perfume. Cortinas tênues bailavam, de manso, aos ritmos do vento, que penetrava as venezianas diferentes, talhadas em substância semelhante ao cristal revestido de essência esmeraldina. Em tudo, simplicidade e previsão, conforto e leveza. Evelina bocejou, distendeu os braços e não se surpreendeu com qualquer dor. Recuperara-se enfim, refletiu alegre. Conhecia a presença da saúde e a testemunhava em si mesma. Nenhum sofrimento, nenhum estorvo. Se algo experimentava de menos agradável, era precisamente um sinal de robustez orgânica: sentia fome. Onde o marido? onde os pais? Desejava gritar de felicidade, comunicando-lhes que sarara. Aspirava a dizer-lhes que os sacrifícios efetuados por ela não haviam sido inúteis. No íntimo, agradecia a Deus a dádiva do próprio restabelecimento e ansiava estender a jubilosa gratidão aos seres queridos. — Atendente Isa, que me sucedeu? Estou bem, mas num estado estranho que não sei definir... — A senhora passou por longa cirurgia, precisa descansar, refazer-se... Para Evelina, em verdade, nada havia de surpreendente naquelas palavras articuladas em tom significativo. Sabia-se operada. Passara pela dolorosa ablação de um tumor. Apesar de tudo, reconhecia-se novamente hospitalizada, sem poder ajuizar dos motivos. — Doutor... — começou dizendo, ansiosa por justificar-se. E pediu informes. Desejava saber como e quando conseguiria rever o esposo e os pais. O facultativo ouviu-a, paciente, e rogou-lhe conformidade. Retornaria aos parentes, mas precisava reajustar-se. Gesticulando carinhosamente, qual se sossegasse uma filha, aclarou: — A senhora está melhor, muito melhor; entretanto, ainda sob rigorosa assistência de ordem mental. Em se ligando a quaisquer agentes suscetíveis de induzi-la a recordações muito ativas da moléstia que sofreu, é provável que todos os sintomas reapareçam. Pense nisso. Não lhe convém, por agora, recolocar-se entre os seus. E com um olhar ainda mais compreensivo, ajuntou: — Coopere... Evelina ouviu a observação, de olhos lacrimosos, mas resignou-se. Afinal, concluiu intimamente, devia ser reconhecida aos que lhe haviam granjeado a bênção da nova situação. Não lhe cabia interferir em providências, cujo significado era incapaz de apreender. A advertência clínica se lhe intrometia na imaginação, insistentemente. Se estava restaurada, qual se via, porque simples lembranças lhe imporiam retorno aos padecimentos de que se acusava liberta? Porquê? Percebia-se na posse de inenarrável euforia. Deliciosa sensação de leveza lhe mantinha a disposição para a alegria, como nunca sentira em toda a existência. Tais recursos de equilíbrio orgânico seriam assim tão fáceis de perder?Infelizmente para ela, confiou-se a semelhantes lembranças e, decorridos alguns minutos, a crise revelou-se, agigantando-se-lhe no corpo em momentos rápidos. Regelavam-se-lhe as extremidades, enquanto que mantinha a ideia de que um braseiro a requeimava por dentro, com a dispneia afrontando-lhe o peito. Desencadeados os sintomas, quis reagir, contrapor conceitos de saúde aos de doença; entretanto, era tarde. O sofrimento ganhou-lhe as forças e passou a contorcer-se no suplício de que se admitira definitivamente distanciada... O médico reapareceu e administrou sedativos. Ambos, nem ele nem a enfermeira, lhe endereçaram o mínimo reproche, mas a doente lhes leu no olhar a convicção de que tudo haviam compreendido. Em silêncio, davam-lhe a saber que não lhe ignoravam a teimosia e que, com toda a certeza, não se acomodando aos avisos recebidos, quisera experimentar por si mesma o que vinha a ser um tipo de mentalização inconveniente. Conquanto a bondade de que dava mostras, o médico agiu com energia. Forneceu instruções severas à companheira de serviço, depois da injeção calmante que ele próprio aplicou à senhora Evelina, em determinada região da cabeça, e recomendou medidas especiais para que ela dormisse. Aconselhável obrigá-la a repousar mais tempo, controlada por anestésicos. A doente não podia e nem devia entregar-se a ideias fixas, sob pena de voltar a sofrer sem necessidade. Evelina registrou as observações dele, em franca modorra. Depois, abismou-se em pesado sono, do qual despertou muitas horas após, consciente de que lhe competia cuidar-se, evitando novo pânico. Mostrou o desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar, à feição de néctar.Refêz-se, vigilante. Reconhecia-se sob uma espécie de assistência cuja eficácia e poder não lhe cabia agora subestimar. Ao retomar a verticalidade, assinalava em si mesma inequívocas diferenças.
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