Evelina despertou num quarto espaçoso, com duas janelas deixando ver o céu.

Emergia de um sono profundo, pensou.

Diligenciou recordar-se, assentando contas da própria situação.

Como teria entrado na amnésia de que estava tornando agora à tona da consciência? Desemperrou a custo os mecanismos da memória e passou a lembrar-se, vagarosamente...
    • A princípio, indescritível pesadelo lhe conturbara o repouso começante.
    • Sofrera, decerto, uma síncope inexplicável.
    • Percebera-se movendo num mundo exótico de imagens que a faziam regredir na estrada das próprias reminiscências.
    • Recapitulara, não sabia como, todas as fases de sua curta vida.
    • Voltara no tempo. Reconstituira todos os dias já vividos, a ponto de rever o pai chegando morto ao lar, quando contava somente dois anos de idade. Nesse filme que as energias ocultas da própria mente haviam exibido para ela, nos quadros mais íntimos do ser, ouvira, de novo, os gritos maternos e enxergava, à frente, os vizinhos espantados, sem compreender a tragédia que se lhe abatia sobre a casa...
Depois, registrara a impressão de tremendo choque.

Algo como que se lhe desabotoara no cérebro e vira-se flutuar sobre o próprio corpo adormecido...

Logo após, o sono invencível.

De nada mais se apercebera.
    • Quantas horas gastara no torpor imprevisto?
    • Estaria regressando a si, vencido o colapso, por efeito de algum tratamento de exceção?
    • Porque não via, ali, junto do leito, algum familiar que lhe propiciasse as necessárias explicações?
Tentou sentar-se e o conseguiu, sem a menor dificuldade.

Inspecionou o ambiente, concluindo que o pouso se lhe trocara. Inferiu das primeiras observações que, tombada em desmaio, fora reconduzida ao hospital e ocupava, agora, larga dependência, que o verde-claro tornava repousante.

Em mesa próxima, viu rosas que lhe chamavam a atenção para o perfume.

Cortinas tênues bailavam, de manso, aos ritmos do vento, que penetrava as venezianas diferentes, talhadas em substância semelhante ao cristal revestido de essência esmeraldina.

Em tudo, simplicidade e previsão, conforto e leveza. Evelina bocejou, distendeu os braços e não se surpreendeu com qualquer dor.

Recuperara-se enfim, refletiu alegre.

Conhecia a presença da saúde e a testemunhava em si mesma. Nenhum sofrimento, nenhum estorvo.

Se algo experimentava de menos agradável, era precisamente um sinal de robustez orgânica: sentia fome.

Onde o marido? onde os pais? Desejava gritar de felicidade, comunicando-lhes que sarara. Aspirava a dizer-lhes que os sacrifícios efetuados por ela não haviam sido inúteis. No íntimo, agradecia a Deus a dádiva do próprio restabelecimento e ansiava estender a jubilosa gratidão aos seres queridos.

— Atendente Isa, que me sucedeu? Estou bem, mas num estado estranho que não sei definir...

— A senhora passou por longa cirurgia, precisa descansar, refazer-se...

Para Evelina, em verdade, nada havia de surpreendente naquelas palavras articuladas em tom significativo. Sabia-se operada. Passara pela dolorosa ablação de um tumor. Apesar de tudo, reconhecia-se novamente hospitalizada, sem poder ajuizar dos motivos.

— Doutor... — começou dizendo, ansiosa por justificar-se.

E pediu informes. Desejava saber como e quando conseguiria rever o esposo e os pais.

O facultativo ouviu-a, paciente, e rogou-lhe conformidade. Retornaria aos parentes, mas precisava reajustar-se.

Gesticulando carinhosamente, qual se sossegasse uma filha, aclarou: — A senhora está melhor, muito melhor; entretanto, ainda sob rigorosa assistência de ordem mental. Em se ligando a quaisquer agentes suscetíveis de induzi-la a recordações muito ativas da moléstia que sofreu, é provável que todos os sintomas reapareçam. Pense nisso. Não lhe convém, por agora, recolocar-se entre os seus.

E com um olhar ainda mais compreensivo, ajuntou: — Coopere...

Evelina ouviu a observação, de olhos lacrimosos, mas resignou-se.

Afinal, concluiu intimamente, devia ser reconhecida aos que lhe haviam granjeado a bênção da nova situação. Não lhe cabia interferir em providências, cujo significado era incapaz de apreender.

A advertência clínica se lhe intrometia na imaginação, insistentemente. Se estava restaurada, qual se via, porque simples lembranças lhe imporiam retorno aos padecimentos de que se acusava liberta? Porquê? Percebia-se na posse de inenarrável euforia. Deliciosa sensação de leveza lhe mantinha a disposição para a alegria, como nunca sentira em toda a existência.

Tais recursos de equilíbrio orgânico seriam assim tão fáceis de perder?Infelizmente para ela, confiou-se a semelhantes lembranças e, decorridos alguns minutos, a crise revelou-se, agigantando-se-lhe no corpo em momentos rápidos. Regelavam-se-lhe as extremidades, enquanto que mantinha a ideia de que um braseiro a requeimava por dentro, com a dispneia afrontando-lhe o peito. Desencadeados os sintomas, quis reagir, contrapor conceitos de saúde aos de doença; entretanto, era tarde. O sofrimento ganhou-lhe as forças e passou a contorcer-se no suplício de que se admitira definitivamente distanciada...

O médico reapareceu e administrou sedativos.

Ambos, nem ele nem a enfermeira, lhe endereçaram o mínimo reproche, mas a doente lhes leu no olhar a convicção de que tudo haviam compreendido. Em silêncio, davam-lhe a saber que não lhe ignoravam a teimosia e que, com toda a certeza, não se acomodando aos avisos recebidos, quisera experimentar por si mesma o que vinha a ser um tipo de mentalização inconveniente. Conquanto a bondade de que dava mostras, o médico agiu com energia.

Forneceu instruções severas à companheira de serviço, depois da injeção calmante que ele próprio aplicou à senhora Evelina, em determinada região da cabeça, e recomendou medidas especiais para que ela dormisse. Aconselhável obrigá-la a repousar mais tempo, controlada por anestésicos. A doente não podia e nem devia entregar-se a ideias fixas, sob pena de voltar a sofrer sem necessidade.

Evelina registrou as observações dele, em franca modorra. Depois, abismou-se em pesado sono, do qual despertou muitas horas após, consciente de que lhe competia cuidar-se, evitando novo pânico. Mostrou o desejo de alimentar-se e foi imediatamente atendida com caldo quente e reconfortante, que lhe calhou gostosamente ao paladar, à feição de néctar.Refêz-se, vigilante. Reconhecia-se sob uma espécie de assistência cuja eficácia e poder não lhe cabia agora subestimar.

Ao retomar a verticalidade, assinalava em si mesma inequívocas diferenças.

[73 - página 37]
André Luiz


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