“Brasília,
DF, 14 de setembro de 2002 Prezado
Etegeano Apareci,
ou antes, reapareci neste mundo em 11 de julho de 1938. Minha infância,
até 9 anos, passei na fazenda, 7º filho de uma prole de 8. Tive assim
o que se pode chamar de uma família normal, pais e irmãos de quem
recebi muito carinho e atenção. Entre brincadeiras inocentes, não
havia nem mesmo rádio e só muito mais tarde tomei conhecimento de que
naquele período uma guerra insana tinha curso na Europa. Meu mundo se
resumia na família, alguns vizinhos, muita simplicidade. Alimento farto
e sem agrotóxico, cresci saudável, física e psiquicamente, freqüentando
uma precária escola de roça, em que a professorinha acabou se casando
com meu irmão mais velho. ____Pelos 9 anos nos mudamos para a cidade e as
transformações foram se atropelando em minha mente.A música, sem dúvida a maior dessas novidades, entrou na minha
vida. Antes só conhecia as modas-de-viola e a viola era o único
instrumento musical. Agora, na cidade, havia o alto-falante despejando
melodias que me encantavam. Muitos anos mais tarde comprei um disco e na
seqüência das faixas uma delas me reconduziu àquela época, quando os
padres missionários, estrangeiros, a tocavam no alto-falante. Essa música
até hoje me provoca incríveis sensações com as lembranças daquele
período. É o coro dos Soldados de Fausto, de Gounod. Outras músicas,
das primeiras que ouvi e que marcaram aquela época são “La Vie en
Rose” e “La Mer”, frente e verso de um antigo disco 78 r.p.m. ____Conheci a sanfona na execução do Sr.
Zezinho, extraordinário personagem que muito influenciou minha
mocidade. Foi ele quem tocou minha valsa de formatura do curso primário,
pois naquela época havia, sim, formatura de primário, com direito a
baile concorrido. ____Depois veio a Escola Técnica e a cidade
grande. Aí então a transformação em minha mente foi tão forte que
até hoje tenho sonhos marcantes. Não é sem motivo que o analista
identificou nesse período as marcas mais profundas de meu psiquismo. No
exame de admissão eu estava encantado com o tamanho do prédio, pois
nunca tinha visto um naquelas dimensões. Antes,
na pensão, passei por um problema curioso. Perguntei ao meu irmão onde
a gente fazia as “necessidades” e ele me levou ao banheiro da pensão,
mas não se lembrou de me dizer como usá-lo. Naquela peça de louça branquinha não podia ser, pois estava muito limpa e
perfumada, nada parecido com as latrinas fedorentas a que estava
habituado. O ralo do chuveiro também não podia ser, pois o buraco era
muito pequeno e não exalava o odor característico. Certo de que tinha
de ser ali, mesmo porque não dispunha de muito tempo, comecei a
analisar o ambiente e dei com a caixa de descarga, das antigas, presa à
parede. Não sabia sua utilidade mas observei sua ligação com o vaso e
deduzi que se puxasse o cordão que dela pendia ia acontecer algo.
Fi-lo, premido pelas circunstâncias, e uma generosa quantidade de água
passou pelo vaso. Bem, concluí, se não for aqui pelo menos ninguém
vai ficar sabendo, pois a água levará tudo. ____Duas semanas depois de iniciadas as aulas
é que, tomando conhecimento do resultado da seleção, me apresentei na
Escola. Como sempre meu irmão me conduziu até lá. Minha vaga no
internato ainda estava reservada. Não teria condições de estudar se não
fosse interno, pois a família não podia me manter em Goiânia. ____Verificado tudo, feitas as anotações, a
malinha de roupa guardada no armário do alojamento, despedi-me de meu
irmão e o secretário da Escola, pouco perspicaz, me empurrou para o
interior, mandando
procurasse minha turma. Não tinha ele a menor ideia do vulcão que era
minha cabeça naquele momento. Fechado estrondosamente o portão às
minhas costas o vulcão explodiu e literalmente entrei em pânico.
Esmurrei o portão e aleguei que precisava falar algo a meu irmão. Este
deve ter lido o pavor em meu semblante e me levou a caminhar a tarde
toda pela cidade, só me reconduzindo à Escola depois que o terremoto
mental estava sob controle. ____Não foi fácil a adaptação de um pequeno
selvagem à civilização. Os amigos foram surgindo numa seleção por
afinidade. Carlos Lucas, o “porquinho”, a quem visitei pouco antes
de sua morte, levado por Ely Azevedo. Ely, João Cardoso, o “jaraguá”,
Jair Borges e tantos outros, todos de origem humilde como eu. Tenho
especial gratidão por um rapaz já feito, na época, que impediu meu
“batismo”.A turma fez uma rodinha com essa intenção, eu no centro,
sem possibilidade de esboçar qualquer reação, comecei a chorar. Como
por milagre surgiu não sei de onde aquele grandalhão que falou do alto
de sua autoridade de antigo: - “Esse novato ninguém vai batizar não.
É muito miúdo”. Eu era realmente bastante franzino. Manoel “macarrão”,
onde quer que esteja, receba meu abraço agradecido. ____Quatro anos de internato me deixaram muita
lembrança da Escola e dos colegas. Aqueles como eu mais humildes, recebíamos
às vezes de casa guloseimas que a família mandava e as dividíamos
fraternalmente com os mais chegados. Domingo à tarde não havia refeição
e fui suspenso uma vez por furtar leite no refeitório, premido pela
necessidade. De outra vez, também no domingo, vi quando um grupo furtava uma caixa de 5 quilos de goiabada. e
os acompanhei de longe até a matinha do Botafogo, onde esconderam-na,
após se saciarem. Observando-os sem ser percebido, só tive o trabalho
de esconder a caixa noutro lugar. Ladrão que rouba de ladrão... ____As aulas de canto orfeônico da professora
Fifia, onde cantávamos Barcarola, de Ofenbach. No coral destacava-se a
potente voz de Jupeir Cadena. O futebol animado no tanquinho redondo, o
teatro, onde depois de muito ensaio ninguém atentou para minha pronúncia
do Lorde “Birón” (Byron), já que nenhum de nós estudávamos inglês.
Só após a estréia da peça um professor nos chamou a atenção para o
detalhe. ____As aulas do professor José Lopes, de
Bernardo Élis, a oficina, terna lembrança dos mestres Amaro e Odir
Garcia, a educação física, o refeitório. Amontoavamo-nos à porta até
o grito de “A B R I U !...”, quando corríamos para as mesas já
servidas a fim de pegar o melhor pedaço de carne e outras iguarias que
eram limitadas a um pedaço por aluno. Certa vez sobrou para mim um pedaço
de mandioca duro, que não tinha cozinhado. Nelito passava pelo corredor
das mesas na sua clássica atitude napoleônica, mão às costas, e,
irritado com a mandioca imprópria para o consumo, atirei-a no pobre
Nelito que nenhuma culpa tinha no episódio. Detalhe importante é que
ele nunca soube de onde veio a mandioca, o que me traria punição
certa. Devo isto à decência dos colegas, pois ninguém delatava.
Quando tinha em mãos algum dinheiro, comprava do cigarro mais barato (Kent?),
dividia cada um em quatro partes e trocava aquele toquinho pelo bife de
um, pelo doce de outro. Fregueses vítimas do terrível vício não
faltavam. Problemas de consciência também não tinha, ainda, com o negócio
infame. ____O grêmio, o jornal, o cine Santa Maria,
onde aos domingos entrávamos na fila bem cedo com a intenção de
comprar ingresso para quem chegava depois e ficar com o trocado. Nem
sempre conseguíamos com ele comprar nosso ingresso. A “matinê” dos
domingos, onde aprendíamos a dançar a valsa para a formatura. Aprecio
e me trazem boas lembranças quando ouço aquelas valsas. Zequinha de
Abreu, Strauss e até a valsa das Flores, de Tchaikovsky. ____Ano passado nos reunimos em Caldas Novas e
revivemos um pouco dessas emoções. Se você não esteve lá, não deve
perder a reunião deste ano, no mesmo local, dias 8, 9 e 10 de novembro
próximos. ____Queremos reviver juntos aqueles tempos e
conhecer também um pouco da sua história. ____Até lá, aquele abraço,” |