____Em poucos instantes, encontrávamo-nos dentro de quarto confortável, onde
dormia um homem idoso, fazendo ruído singular. Via-se-lhe, perfeitamente,
o corpo perispirítico
unido à forma física,
embora parcialmente desligados entre si. Ao seu lado, permanecia uma
entidade singular, trajando vestes absolutamente negras. Notei que o
companheiro adormecido permanecia sob impressões de doloroso pavor.
Gritos agudos escapavam-lhe da garganta. Sufocava-se, angustiadamente,
enquanto a entidade escura fazia gestos que eu não conseguia compreender.
____Sertório acercou-se de mim e observou: Vieira está sofrendo um pesadelo cruel.
____E indicando a entidade estranha: Creio que ele terá atraído até
aqui o visitante que o espanta.
____Com efeito, muito delicadamente, Sertório começou a dialogar com
a entidade de luto: O amigo é
parente do companheiro que dorme? — Não,
não. Somos conhecidos velhos. E, muito impaciente, acentuou: Hoje,
à noite, Vieira me chamou com as suas reiteradas lembranças e
acusou-me de faltas que não cometi, conversando levianamente com a família.
Isso, como é natural, desgostou-me. Não bastará o que tenho sofrido,
depois da morte? Ainda precisarei ouvir falsos testemunhos de amigos
maledicentes? Não poderia esperar dele semelhante procedimento, em virtude das relações afetivas que nos
uniam as famílias, desde alguns anos. Vieira foi sempre pessoa de
minha confiança. Em razão da surpresa, deliberei esperá-lo nos momentos
de sono, a fim
de prestar-lhe os necessários esclarecimentos.
____O estranho visitante, todavia, fez
uma pausa, sorriu irônico, e continuou: Entretanto, desde o momento em que me pus a explicar-lhe a situação
do passado, informando-o quanto aos verdadeiros móveis de minhas
iniciativas e resoluções na vida carnal, para que não prossiga
caluniando-me o nome, embora sem intenção, Vieira fez este rosto
de pavor que estão vendo e parece não desejar ouvir as minhas verdades.
____Vieira não revelava compreender convenientemente o auxílio que
lhe era trazido, fixando-nos com estranheza e ansiedade, intensificando,
ainda mais, os gemidos gritantes que lhe escapavam da boca.
____Sentindo a silenciosa reprovação de Sertório, o habitante das
zonas inferiores dirigiu-lhe a palavra de modo especial:O senhor
admite que devamos ouvir impassíveis os remoquEs da leviaNdade? não será
passível de censura e punição o amigo infiel que se vale das imposições
da morte para caluniar e deprimir? Se Vieira sentiu-se no direito
de acusar-me, desconhecendo certas particularidades dos problemas de minha
vida privada, não é justo que me tolere os esclarecimentos até ao fim?
Não sabe ele, acaso, que os mortos continuam vivos? ignorará,
porventura, que a memória de cada companheiro deve ser sagrada? Ora esta!
eu mesmo já lhe ouvi, em minha nova condição de desencarnado, longas
dissertações referentes ao respeito que devemos uns aos outros ...
Não considera, pois, que tenho motivos justos para exigir um legítimo
entendimento?!...
____O interpelado esboçou um gesto de
complacência e observou: Talvez esteja com a razão, meu caro. Entretanto,
creio deva desculpar seu amigo! Como exigir dos outros conduta rigorosamente correta, se ainda não somos
criaturas irrepreensíveis? Tenha calma, sejamos caridosos uns para com os
outros! ... ____E, enquanto a entidade se punha a meditar nas palavras ouvidas, Sertório
falou-me em tom discreto: Retirar violentamente a visita, cuja
presença o próprio Vieira propiciou, não é tarefa compativel
com as minhas possibilidades do momento. Mas podemos socorrê-lo,
acordando-o.
____E, sem pestanejar, sacudiu o adormecido, energicamente, gritando-lhe o
nome com força.
____Vieira despertou confuso, estremunhando, sob enorme fadiga, e ouvi-o
exclamar, palidíssimo: Graças a Deus, acordei! que pesadelo terrível!...
Será crível que eu tenha lutado com o fantasma do velho Barbosa?
Não! não posso acreditar! ... ____Vieira não nos viu, nem identificou a presença da entidade enlutada,
que ali permaneceu até não sei quando. E, ao retirarmo-nos, ainda lhe
notei as interrogações íntimas, indagando de si mesmo sobre o que teria
ingerido ao jantar, tentando justificar o susto cruel com pretextos de
origem fisiológica. Longe de auscultar a própria consciência, com
respeito à maledicência e à leviandade, procurava materializar a lição
no próprio estômago, buscando furtar-se à realidade. |