____André_Luiz conta que, em "Nosso Lar", logo após às vinte e uma horas, chegou alguém dos fundos
do enorme parque. Era um homenzinho de semblante singular,
evidenciando a condição de trabalhador humilde. Narcisa recebeu-
o com gentileza, perguntando:
____– Que há, Justino? Qual é a sua mensagem?
O operário, que integrava o corpo de sentinelas das Câmaras
de Retificação, respondeu, aflito:
____– Venho participar que uma infeliz mulher está pedindo socorro,
no grande portão que dá para os campos de cultura. Creio
tenha passado despercebida aos vigilantes das primeiras linhas.
____– E por que não a atendeu? - interrogou a enfermeira.
____O servidor fez um gesto de escrúpulo e explicou: ____– Segundo as ordens que nos regem, não pude fazê-lo, porque
a pobrezinha está rodeada de pontos negros.
____– Que me diz? - revidou Narcisa, assustada.
____– Sim, senhora.
____– Então, o caso é muito grave.
____Curioso, segui a enfermeira, através do campo enluarado. A
distância não era pequena. Lado a lado, via-se o arvoredo tranqüilo
do parque muito extenso, agitado pelo vento caricioso. Havíamos
percorrido mais de um quilômetro, quando atingimos a grande
cancela a que se referira o trabalhador.
____Deparou-se-nos, então, a miserável figura da mulher que implorava
socorro do outro lado. Nada vi, senão o vulto da infeliz,
coberta de andrajos, rosto horrendo e pernas em chaga viva; mas
Narcisa parecia divisar outros detalhes, imperceptíveis ao meu
olhar, dado o assombro que estampou na fisionomia, ordinariamente
calma.
____– Filhos de Deus - bradou a mendiga ao avistar-nos -, dai-me
abrigo à alma cansada! Onde está o paraíso dos eleitos, para que
eu possa fruir a paz desejada.
____Aquela voz lamuriosa sensibilizava-me o coração. Narcisa,
por sua vez, mostrava-se comovida, mas falou em tom confidencial:
____– Não está vendo os pontos negros?
____– Não - respondi.
____– Sua visão espiritual ainda não está suficientemente educada.
____E, depois de ligeira pausa, continuou:
____– Se estivesse em minhas mãos, abriria imediatamente a nossa
porta; mas, quando se trata de criaturas nestas condições, nada
posso resolver por mim mesma. Preciso recorrer ao Vigilante-Chefe, em serviço.
____Assim dizendo, aproximou-se da infeliz e informou, em tom
fraterno:
____– Faça o obséquio de esperar alguns minutos.
____Voltamos apressadamente ao interior. Pela primeira vez, entrei
em contacto com o diretor das sentinelas das Câmaras de
Retificação. Narcisa apresentou-me e notificou-lhe a ocorrência. Ele esboçou um gesto significativo e ajuntou:
____– Fez muito bem, comunicando-me o fato. Vamos até lá.
____Dirigimo-nos os três para o local indicado.
____Chegados à cancela, o Irmão Paulo, orientador dos vigilantes,
examinou atentamente a recém-chegada do Umbral, e disse:
____– Esta mulher, por enquanto, não pode receber nosso socorro.
Trata-se de um dos mais fortes vampiros que tenho visto até hoje. é preciso entregá-la à própria sorte.
____Senti-me escandalizado. Não seria faltar aos deveres cristãos
abandonar aquela sofredora ao azar do caminho? Narcisa, que me
pareceu compartilhar da mesma impressão, adiantou-se suplicante:
____– Mas, Irmão Paulo, não há um meio de acolhermos essa miserável
criatura nas Câmaras?
____– Permitir essa providência - esclareceu ele -, seria trair minha
função de vigilante.
____E indicando a mendiga que esperava a decisão, a gritar impaciente,
exclamou para a enfermeira:
____– Já notou, Narcisa, alguma coisa além dos pontos negros?
____Agora, era minha instrutora de serviço que respondia negativamente.
____– Pois vejo mais - respondeu o Vigilante-Chefe.
____Baixando o tom de voz, recomendou:
____– Conte as manchas pretas.
____Narcisa fixou o olhar na infeliz e respondeu, após alguns instantes:
____– Cinqüenta e oito.
____O Irmão Paulo, com a paciência dos que sabem esclarecer
com amor, explicou:
____– Esses pontos escuros representam cinqüenta e oito crianças
assassinadas ao nascerem. Em cada mancha vejo a i
magem_mental de uma criancinha aniquilada, umas por golpes esmagadores,
outras por asfixia. Essa desventurada criatura foi profissional de
ginecologia. A pretexto de aliviar consciências alheias, entregava-se
a crimes nefandos, explorando a infelicidade de jovens inexperientes.
A situação dela é pior que a dos suicidas e homicidas,
que, por vezes, apresentam atenuantes de vulto.
____Recordei, assombrado, os processos da medicina, em que
muitas vezes enxergara, de perto, a necessidade da eliminação de nascituros para salvar o organismo materno, nas ocasiões perigosas;
mas, lendo-me o pensamento, o Irmão Paulo acrescentou:
____– Não falo aqui de providências legítimas, que constituem aspectos
das provações redentoras, refiro-me ao crime de assassinar
os que começam a trajetória na experiência terrestre, com o direito
sublime da vida.
____Demonstrando a sensibilidade das almas nobres, Narcisa rogou:
____– Irmão Paulo, também eu já errei muito no passado. Atendamos
a esta desventurada. Se me permite, eu lhe dispensarei
cuidados especiais.
____– Reconheço, minha amiga - respondeu o diretor da vigilância,
impressionando pela sinceridade -, que todos somos espíritos
endividados; entretanto, temos a nosso favor o reconhecimento
das próprias fraquezas e a boa-vontade de resgatar nossos débitos;
mas esta criatura, por agora, nada deseja senão perturbar quem
trabalha. Os que trazem os sentimentos calejados na hipocrisia
emitem forças destrutivas. Para que nos serve aqui um serviço de
vigilância?
____E, sorrindo expressivamente, exclamou:
____– Busquemos a prova.
____O Vigilante-Chefe aproximou-se, então, da pedinte e perguntou:
____– Que deseja a irmã, do nosso concurso fraterno?
____– Socorro! socorro! socorro!... - respondeu lacrimosa.
____– Mas, minha amiga - ponderou acertadamente -, é preciso
sabermos aceitar o sofrimento retificador. Por que razão tantas
vezes cortou_a_vida_a_entezinhos_frágeis, que iam à luta com a
permissão de Deus?
____Ouvindo-o, inquieta, ela exibiu terrível carantonha de ódio e
bradou:
____– Quem me atribui essa infâmia? Minha consciência está
tranqüila, canalha!... Empreguei a existência auxiliando a maternidade
na Terra. Fui caridosa e crente, boa e pura...
____– Não é isso que se observa na fotografia_viva_dos_seus_pensamentos_e_atos. Creio que a irmã ainda não recebeu, nem mesmo
o benefício do remorso. Quando abrir sua alma às bênçãos de
Deus, reconhecendo as necessidades próprias, então, volte até
aqui.
____Irada, respondeu a interlocutora:
____– Demônio! Feiticeiro! Sequaz de Satã!... Não voltarei jamais!...
Estou esperando o céu que me prometeram e que espero
encontrar.
____Assumindo atitude ainda mais firme, falou o Vigilante-Chefe com autoridade:
____– Faça, então, o favor de retirar-se. Não temos aqui o céu que
deseja. Estamos numa casa de trabalho, onde os doentes reconhecem
o seu mal e tentam curar-se, junto de servidores de boa-vontade.
____A mendiga objetou atrevidamente:
____– Não lhe pedi remédio, nem serviço. Estou procurando o paraíso
que fiz por merecer, praticando boas obras.
____E, endereçando-nos dardejante olhar de extrema cólera, perdeu
o aspecto de enferma ambulante, retirando-se a passo firme,
como quem permanece absolutamente senhor de si.
____Acompanhou-a o Irmão Paulo com o olhar, durante longos
minutos, e, voltando-se para nós, acrescentou:
____– Observaram o Vampiro? ...
- Exibe a condição de criminosa e
declara-se inocente
- é profundamente má e afirma-se boa e pura
- sofre desesperadamente e alega tranqüilidade
- criou um inferno para si própria e assevera que está procurando o céu.
____Ante o silêncio com que lhe ouvíamos a lição, o Vigilante-Chefe rematou:
____– é imprescindível tomar cuidado com as boas ou más aparências.
Naturalmente, a infeliz será atendida alhures pela Bondade
Divina, mas, por princípio de caridade_legítima, na posição em
que me encontro, não lhe poderia abrir nossas portas. [32 - páginas 168/174] - André Luiz |