____Meu amigo, o engenheiro José Costa, em seu interessante livro De lá da Vida (página 18), narra o seguinte episódio com ele próprio ocorrido:
- “... Era uma noite abafada de um tórrido junho, em que eu me preparava intensamente para os exames do liceu. Conquanto me achasse escudado por indômita vontade de resistir à fadiga opressiva que me trabalhava a mente, tive que me submeter, completamente extenuado, a uma imperiosa necessidade de repouso e atirei-me desmaiado, mais que adormecido, na cama, sem apagar a lâmpada de petróleo que continuou a arder sobre a mesinha de cabeceira. Provavelmente com um movimento brusco do braço, fiz que entre a cama e a mesinha caísse a lâmpada, que não se havendo apagado, começou a desprender uma fumaça densa, por tempo suficiente a encher o quarto de negra nuvem de gás acre e pesado. A atmosfera se tornava cada vez mais irrespirável e, provavelmente, na manhã seguinte, o meu corpo seria achado exânime, se não se houvesse produzido singular fenômeno. Tive a sensação nítida e exata de achar-me, apenas com o meu Eu pensante, no meio do quarto, separado_completamente_do_corpo, que continuava jazendo sobre a cama. Via, se é que posso dar essa denominação à sensação que eu experimentava, as coisas que me rodeavam como se uma irradiação visual atravessasse as moléculas dos objetos sobre os quais demorava a minha atenção, como se a matéria se dissolvesse ao contacto do meu pensamento...
____Via o meu corpo perfeitamente reconhecível em todos os detalhes, no seu perfil, no semblante, mas com os feixes venosos e nervosos a vibrarem qual luminoso formigueiro... O quarto se achava na mais completa escuridão, pois que a chama da lâmpada caída não chegava a espalhar luz além da manga de vidro enegrecida. Eu, entretanto, via os objetos, ou, melhor, via-lhes os contornos quase fosforescentes a desvanecer-se, o mesmo acontecendo com as paredes, logo que sobre umas e outras se concentrava a minha atenção, deixando-me ver de igual maneira os objetos dos quartos contíguos. O_meu_Eu_pensante_carecia_de_peso, ou, antes, não sentia a impressão da força de gravidade e não tinha noção de volume ou de massa. Eu já não era um corpo, visto que o meu corpo jazia inerte em cima da cama: era como que a expressão tangível de um pensamento, de uma abstração, capaz de transferir-se para qualquer parte da Terra, do mar, do céu, mais rapidamente do que um relâmpago, no instante mesmo em que formulasse esse desejo e, por conseguinte, sem a noção de tempo, nem de espaço.
____Se dissesse que eu me sentia livre, leve, etéreo, nem longinquamente exprimiria a sensação que experimentava naquele momento de ilimitada liberação. Mas, não era uma impressão agradável; eu me sentia como que presa de angústia inexprimível, tendo a intuição de que só poderia fugir-lhe, tirando o meu corpo material da situação que o afligia. Quis, portanto, apanhar a lâmpada e abrir a janela; não conseguia, porém, efetuar a ação material que para isso era necessária, como não conseguia mover os membros do meu corpo, que me parecia só poder movimentar-se ao sopro da minha vontade espiritual. Pensei então em minha mãe, que dormia no quarto ao lado. Vi-a perfeitamente através da parede que separava os dois aposentos, a repousar tranqüilamente na sua cama. Mas, o seu corpo, ao contrário do meu, parecia irradiar uma luminosidade, uma fosforescência_luminosa. Afigurou-se-me não ser preciso nenhum esforço para fazê-la aproximar-se do meu corpo. Logo a vi descer precipitadamente da cama, correr para a janela e abri-la, como se agisse sob o influxo_do_último_ensamento que eu concebera antes de chamá-la; vi-a sair em seguida do quarto, andar pelo corredor, entrar pela porta do meu aposento e aproximar-se, tateando, do meu corpo, com os olhos fechados. Parece-me que o seu contacto teve a faculdade de fazer que o meu Euespiritual entrasse novamente no corpo. Achei-me desperto, com a garganta seca, as têmporas a me martelarem, a respiração opressa e o coração como a querer escapar-se-me do peito.
____Posso afirmar ao leitor que, até àquele momento, eu nada lera, nem ouvira falar acerca das teorias_espíritas, dos fenômenos_de_“bilocação”, dos desdobramentos da alma e do corpo. Eram-me completamente desconhecidas as experimentações_mediúnicas e as sessões_de_Espiritismo: posso, portanto, afastar, em absoluto, a ideia de que se tratasse de um fenômeno de sugestão. Tão-pouco podia tratar-se de um sonho, dada a enorme diferença entre as sensações que sobrevivem na recordação das imagens que o sonho desperta e as sensações, extremamente dessemelhantes, quanto à impressão que produzem, experimentadas por mim naquele instante. Com efeito, não se me deparava em tais recordações aquela nebulosidade, aquela indistinta sensação de quimera e de realidade que revestem as impressões do sonho. Antes, eu jamais tivera a sensação de existir de modo tão real, como no momento em que me senti separado do corpo. Interrogada por mim pouco depois do acontecido, minha mãe confirmou que primeiro abrira a janela do seu quarto, como se ela própria se sentisse sufocada, antes de correr em meu auxílio. Ora, o fato de eu ter visto aquele seu gesto através das paredes, permanecendo inanimado o meu corpo na cama, exclui, sem mais, a hipótese da alucinação ou do incubo durante um sono sobrevindo em excepcionais circunstâncias fisiológicas.
____Excluídas, portanto, as hipóteses da sugestão, do sonho, da alucinação e do incubo, não me restava outra dedução lógica, senão supor que o meu Eu pensante houvesse agido fora do corpo e que, nessas condições, dotado de faculdades transcendentais, houvesse podido ver o que estava do outro lado das paredes e reclamar para o meu corpo a assistência de minha mãe, a fim de que me socorresse. Terei tido, nesse caso, a mais evidente prova de que minha alma se destacara do corpo durante a sua existência corpórea. Terei tido, em suma, a prova da existência da alma e também da sua imortalidade, pois que, se era exato que ela se libertara por efeito de circunstâncias especiais, do invólucro material do corpo, agindo e pensando fora deste, com mais forte razão deverá achar-se, pela morte, na plenitude da sua liberdade e livre de qualquer vínculo que a prenda à matéria.”
____é particularmente interessante este episódio, porquanto o protagonista, meu amigo, é pessoa muitíssimo culta e, também, verdadeiro homem de ciência, de modo que logrou descrever minuciosamente suas próprias impressões, com rara penetração analítica, apresentando aos estudiosos um quadro completo e altamente sugestivo das sensações que experimentou na fase de desdobramento. Reveste-se de inegável valor metapsíquico cada um dos períodos por que passou e que descreveu, a começar da observação de que a sua visão espiritual “penetrava através das moléculas dos objetos, como se a matéria se dissolvesse ao contacto do seu pensamento”, tornando-lhe evidente o que significam as hodiernas descobertas científicas acerca da “imaterialidade da matéria”.
____Notável igualmente o fenômeno de “ aloscopia”, por virtude do qual ele via, à distância, no interior do seu corpo, “os feixes nervosos a vibrarem como um formigueiro luminoso”. Importa, finalmente, notar a eficácia sugestiva da sensação, que ele experimentou, de “estar livre, leve, etéreo, qual a expressão tangível de um pensamento, de uma abstração, capaz de transferir-se para qualquer parte da Terra, do mar, do céu, mais rapidamente do que o relâmpago, por ato da própria vontade”.
____Observarei, por último, que, neste caso, como em tantos outros, o que ocorreu leva o protagonista à convicção inabalável de ter assistido “ao fato de a sua alma destacar-se do seu corpo”, e o leva a adquirir a certeza da existência e sobrevivência do espírito humano. Essa concordância de opiniões é a tal ponto racional e legítima, que se nos afigura ocioso assinalá-la de novo. Todavia, cumpre insistir nisso, em vista do grande número dos que negam, de boa fé, a sobrevivência e em vista, sobretudo, da eficácia que adquire a opinião cumulativa daqueles que, por haverem assistido ao ato de seus espíritos se separarem dos respectivos corpos, são, no fundo, os únicos competentes para julgar do fenômeno, o que não se dá com os cientistas que das suas cátedras sentenciam gratuitamente que se deve considerar tudo isso um conjunto de objetivações alucinatórias, determinadas por perturbações da cinestesia. [111 - páginas 130/ 134] - Ernesto Bozzano |